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A Europa do Burocrata





“Onde fica a Europa?
Mas qual Europa? Pode especificar?
Humm... a Europa…
Mas há muitas Europas.   A do Euro, a do Sul, a do Norte, enfim, a que Europa se refere?
Já sei! Se calhar a esse milagre genético do multicefalismo…
Não é a essa Europa… mas olhe que é a melhor pista para chegarmos ao que pretende.
Diga-me a sua origem por favor.
Bissau? Mas onde é que isso fica?
África??
Bom isso é um problema, não é muçulmano pois não?
Ahhh, é muçulmano…
Então e a sua pele, que cor tem?
Claro que a pergunta faz sentido.
Sou um burocrata, meu caro senhor, sou cego!
Não o quero desapontar, mas parece-me bem que a Europa que pretende
não passa de uma quimera.
Tem mesmo a certeza?
Sim, claro que estou a pôr em causa o que me está a dizer. Não existe nenhuma Europa como a que descreve. Ou é um mistificador ou foi enganado por alguém que lhe quis vender um produto de contrafacção.
Bom, está certo, sinto que é um homem de bem e até consigo intuir que chegou a um ponto sem retorno. Não quero que fique de mãos a abanar a contemplar um sonho, vou ajudá-lo.
Sabe o meu amigo que eu possuo uma lancha?
É verdade, uma bela lancha com motor e tudo. Quem a utiliza é um parente meu, afastado, já que eu sendo cego não a posso conduzir, o que valha a verdade até me dá um certo jeito. Eh. Eh.
Bom, eu posso falar com esse meu parente e mediante uma módica quantia, ele transportá-lo-á até um local chamado Gibraltar, que fica na Europa pois claro. Não é bem o que pretende, mas o óptimo é inimigo do bom, como muito bem sabe…
… Dizes-me que a lancha foi ao fundo. Safou-se alguém?
Não? Melhor assim, submerso ninguém fala…
O que vamos fazer? Compramos outra lancha, claro.”
Acordei! Acordei! Acordei deste pesadelo.
Estremunhado, recamado de suor, entorpecido ainda do sonho mau…
Mas qual sonho? Qual pesadelo?
A verdade é que todos os anos morrem pessoas afogadas no Mediterrâneo, apenas porque julgam que deste lado, à sua espera, numa esquina qualquer das cidades grandes, se encontra o Eldorado.
Aquele Eldorado do Velho Continente, tolerante e aberto, o continente dos direitos, que reparte equitativamente os frutos do seu pomar da abundância.
Pois é, todos os anos morrem dezenas, centenas, milhares, pouco importa o número. Morrem pessoas, morrem sonhos, e também os sonhos daqueles que os viram partir, e sonhos nossos, já que nunca os veremos chegar, com a sua força, a sua vontade de vencer, com o contributo imenso e enriquecedor da sua diferença.
Estamos velhos nesta Europa, cansados de andar pelo mundo, régua e esquadro na mão a traçar os mapas da nossa conveniência.
Agora que retornamos a casa, ou a isso fomos forçados, fechamo-nos na nossa fortaleza de cristal, temerosos do mundo e da mudança, convencidos da nossa aparente riqueza e reinventamos um novo significado para a palavra autismo.
Interrogo-me.
Essa ideia fantástica de uma Europa sem fronteiras, unida por opção das gentes, na sua diversidade cultural, que é o nosso contributo, o nosso maior ganho,  terá razão de ser? Será consistente?
Ou é apenas uma versão revista da quimera do meu sonho?
Não iremos nós, os crédulos, embarcar numa lancha com destino incerto?
Os burocratas são cegos sim senhor, não nos querem ver, não nos podem ver, porque o rosto é a expressão da alma, e essa verdade é-lhes incómoda.
Por isso querem a Europa dos cidadãos, desse clube privado com cartão de acesso e vários níveis de integração; o cidadão platina, o cidadão “gold”, o cidadão comum que no seu desespero de viver grita e esbraceja e agarra-se a qualquer a qualquer solução. Porque a crise está aí há que tomar medidas, portanto toma lá apoios.
Eu quero a Europa das gentes, das pessoas que andam na rua e transpiram e têm cólicas ao fim do mês e têm os olhos abertos de espanto.
Espanto sim.
Porque o burocrata, além de cego é translúcido, só lhe adivinhamos os contornos, sabemos que está, mas não o identificamos, é o burocrata da crise de 2008 e pronto.
Como é translúcido às vezes cria uns émulos, que se misturam com as gentes e tentam, com ar liberal, vender ideias que de tão gastas serão quanto muito avós das ideias. Muitas pessoas confundem-se e compram-lhes o patuá, a crédito, sem lerem as palavras minúsculas do contrato.
É grande o logro em que caímos ao confiar na lengalenga dos burocratas.
Aqui na Europa, mal ou bem, ao longo dos milénios foi-se constituindo uma manta de culturas, que embora se expressem de distintas formas, ou melhor dizendo, se resolvam através de distintas fórmulas, têm uma matriz comum, Greco-latina, que se distancia de atavismos predeterminantes, como a matriz Semita, e confere ao Homem a liberdade de encaminhar o seu próprio destino, independentemente da vontade dos Deuses. A nossa superação está sempre para além do horizonte, por isso, as nossas metas vão aumentando, na justa medida do caminho que percorremos.
Isso é bom, levou-nos ao resto do mundo e, mesmo não querendo trazê-lo de volta, fomos forçados a tal porque saímos, porque fomos confrontados com realidades distintas, muitas delas insubmissas, que nos levaram a um relacionamento muito distante do Eurocentrismo que sempre pretendemos impor.
Mesmo quando presumivelmente “os outros” se aculturavam, tal não passava de ficção, pois a sua resistência, passiva, face ao poderio “tecnológico”, leia-se bélico, dos europeus, levava-os a moldar o seu modus vivendi ao que seria entendido como europeu, sem no entanto abdicarem das suas raízes.
Iniciou-se assim um processo que designo como a “síndrome do desalinho”.
Quando se inicia uma construção em altura, em determinado ponto do processo, há que escorar vigas que sustentarão toda a construção. Vamos então colocando rebites ou parafusos, o que quer que seja que as segure e nivele, mas se o segundo rebite estiver mal alinhado com o primeiro e os restantes forem sendo alinhados com o precedente e com a mesma margem de erro…
Inevitavelmente a construção colapsa e desaba. Podemos optar por mantê-la e impedir a sua queda através de múltiplos recursos, mais ou menos engenhosos, mas o erro persiste e o fim, será inevitavelmente o mesmo. A ruína.
Esse postulado é válido também nas relações que se foram estabelecendo ao longo dos séculos entre o “Velho Continente” e o resto do mundo, pequenos erros quase indecifráveis que se foram acumulando até ao ponto de ruptura. Mas mesmo depois do óbvio, em lugar de um recomeço viável, insistiu-se na manutenção de um status quo manifestamente inviável, de tal modo que hoje em dia se levantam as vozes de um lado e do outro do mediterrâneo sem que o entendimento se aviste.
O mesmo com as relações de poder dentro da própria Europa, ninguém sabe como esse escol (não foram eleitos) de burocratas cegos e apátridas, de rosto velado, inidentificáveis, chegaram ao poder e deslocaram o homem do centro de tudo, para uma posição totalmente absurda no meio de uma engrenagem trituradora, transmutando a sua identidade para um vazio absoluto reflectido num número qualquer de qualquer documento que só ao burocrata é útil.
Não podemos como Tântalo, sujeitar-nos ao suplício.
A resposta de tão óbvia, fica ao critério de cada um.


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