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Ficção sobre um tema verde

      

A minha madrinha Roque deu-me uma moeda de vinte e cinco tostões para ir comprar rebuçados à loja do Maurício Matias que ficava no outro lado da rua.
Lá fui eu, todo lampeiro, com a pequena moeda de prata na mão fechada. Ao entrar na venda, que à época era também uma casa de vinhos e petiscos, deram em estralejar foguetes lá para os lados do Pupo. "Que é que se passa?" Ouvi alguém perguntar. "O botas caiu de uma cadeira e está a bater a caçuleta", respondeu uma voz vibrante de alegria.
"Que raio", pensei eu, "então o Constantino cai da cadeira, fica às portas da morte e as pessoas põem-se a festejar?" Fiquei com pena do Constantino Botas, homem simpático, meu vizinho, até me contava histórias de polícias e ladrões… que gente mais desumana.
Entretanto o Maurício convidara todos os presentes para beberem um copo e, a mim, ofereceu-me uma laranjada da rical, claro que me recusei a aceita-la, jamais faria essa desfeita ao meu amigo Constantino. Mas de repente, ei-lo que aparece a dobrar a esquina, todo contente, de sorriso estampado no rosto.
"Então você não caiu da cadeira sr Constantino?" Gargalhada geral.
"Não rapaz, foi o outro botas, o velho corvo, lá em Lisboa, eu ainda estou para durar, bebe lá a tua laranjada que é dia de festa, e guarda o dinheiro, que hoje sou eu quem te oferece os rebuçados".
Devia ser tramado esse velho botas, para as pessoas ficarem tão contentes com a sua triste sorte.
Quando cheguei a casa, a madrinha Roque estava a chorar, de contentamento disse ela, e de saudades também, lembrara-se do meu bisavô Sampaio, o seu pai, que haveria de ter gostado de ouvir a notícia. Demasiado tarde, já que ele tinha morrido há um par de anos. Mas, mais vale tarde do que nunca. Assim talvez o meu primo Quim não tivesse que ir para a guerra. Depois calou-se e mandou-me ir brincar com o Manuel António, que morava ao fim da rua e era filho do Amarino latoeiro.
À porta da taberna lá estava o Ciroila, de beata ao canto da boca e o jornal enfiado entre a jaqueta e o braço esquerdo, coisa estranha essa do Ciroila se especar ali horas a fio com o jornal debaixo do braço, ele, que nem ler sabia…
Quando perguntei ao meu avô a explicação para tal bizzarria ele mandou-me calar e disse que tudo tem o seu tempo, que mais tarde perceberia o porquê da coisa e eu não insisti.
Muitos anos se passaram, sem mais foguetes. Entretanto eu crescera, as minhas dúvidas foram-se dissipando e aos poucos, no seu lugar foram-se instalando certezas, primeiro frágeis, tímidas, depois, cada vez mais seguras, mais intensas. Percebera entretanto os motivos do foguetório e, já há muito entendera o código do Ciroila. O meu primo Quim já tinha vindo da Guiné e eu preparava-me para ser o próximo da lista, ou então para dar o salto até outras paragens.
Foi então que os foguetes surgiram de novo, com uma força renovada. Só que desta vez, não eram apenas uns tímidos petardos de fim de tarde.
Na rádio ouvia-se Grândola e as pessoas dançavam e a vida era finalmente uma festa e a primavera era por fim eterna e nós merecíamo-la porque sim, apenas porque sim e éramos felizes e pronto.
Se a madrinha Roque fosse viva iria certamente lembrar-se do meu bisavô Sampaio e do seu amigo Militão e se o Maurício Matias cá estivesse, de certeza que estaria a pagar copos a toda a gente e até mesmo o Ciroila poderia largar de vez o jornal e, quem sabe, aprender a ler.
As pessoas saíam à rua e falavam, falavam, falavam, como se nunca tivessem dito nada que valesse a pena e fosse a altura de recuperar o tempo perdido e as crianças olhavam os adultos com os seus enormes olhos de ver e falavam também e perguntavam e ninguém lhes retorquia que mais tarde haveriam de perceber os porquês de agora.
Aos dias se seguiram dias, aos meses se seguiram meses, até que um ano se esgotou.
O meu amigo Constantino começara a escrever no jornal da terra, artigos de opinião, dizia ele, já que opinião sempre tivera, mas expressá-la assim preto no branco e em letra times, era um luxo da democracia, dizia também que escrever no jornal da terra era cultivar a diferença, e que a diferença não se resumia a um sim ou sopas entre a direita e a esquerda.
Eu também sentia que os foguetes já tinham mirrado o seu poder de encantar e que toda a gente de tanto falar, se tinha arredado da importância de ouvir e que acabada a festa, recolhidas as canas, havia o terreiro para arrumar.
Poucos tinham muita terra, muitos, terra nenhuma e outros, os fazendeiros, iam tendo alguma e davam-se bem, alguns deles não temiam o futuro, outros sim e esses facilmente se encantavam nas palavras dos agricultores:
"Na Suécia, país de eleição e de belas mulheres, se vêem alguém bem na vida logo pensam no que fazer para o alcançar, querem ascender os suecos, cá não, se alguém está bem, tratam mas é de o derrubar e é por essas e outras que nunca seremos nada".
Culpados disso, os infames comunistas, que do trabalho fogem, como belzebu fugiu da cruz. "Guardam armas para a revolução e ocupam as terras férteis que outros trabalharam, esquecem-se eles que cada um tem o seu lugar e nasce predestinado. Somos como os dedos da mão, uns servem para umas coisas, outros para outras".
Não eram poucos, aqueles que se sentiam o dedo que preme o gatilho. Os ânimos estavam exaltados.
Constantino sabia disto e de muito mais e pregava como Cristo no deserto, como adiante se verá.
Em tarde amena convidou-me para um passeio e rumamos até Azambuja, na herdade Torre Bela celebrava-se a revolução, sem cravos, mas com os soldados do lado do povo, julgava eu, o ingénuo espectador do sonho. Toda a esquerda lá estava em romaria, de violas a enxadas, tudo se registava de câmara em punho para a posteridade, era o povo a esconjurar.
No regresso vim cheio, eu e outros, todos queríamos o nosso lugar, enxada ou viola, formiga ou cigarra tanto fazia, era preciso navegar.
Em Alpiarça, terra brindada pelo Estado Novo com uma secção especial da D.G.S. todos se mexiam, impressionante formigueiro esse dos seareiros Alpiarçolhos a percorrerem os trilhos da revolução, todas as casas agrícolas abanavam e uma após outra iam cedendo, alguns agricultores desesperavam no calor do Brasil, como D. João VI. Outros como os da Lagoalva reciclavam-se em democratas e cantavam virtudes trotskistas.
Em Almeirim a história era outra, lá estava-se mais próximo de Rio Maior que da Azambuja. Muitos fazendeiros temiam-se das ocupações, julgavam eles que a fome do povo se saciaria com meia dúzia de hectares e por esse erro se juntaram às grandes casas, exército sem soldados, feito de sargentos e generais, do temor dos sargentos, do cinismo dos generais, combinação explosiva.
Do lado que era o meu nessa baia das circunstancias, poucas formigas havia, o PC não tinha a força de Alpiarça. Havia esquerda demais, muitas vontades em escala difusa, abespinhavam-se uns, melindravam-se os outros e surgiam figuras elevadas do magote, a tentar dar sentido à coisa, tarefa vã, mas na altura não sabíamos o que vivemos até hoje.
Constantino como coro de teatro clássico, pregava a tragédia que só ele pressentia.
Organizavam-se excursões a Rio Maior, brandiam-se mocas, davam-se tiros para o ar na Berbéria do Ribatejo, mas por baixo onde estavam enterradas as g3, o silêncio fervia.
O verão ia quente nesse ano e como de costume Almeirim tirou folga e abalamos todos para a Nazaré. No passeio marítimo as pessoas cruzavam-se e contavam-se espingardas, todos se olhavam de soslaio, cumprimentavam-se baixando a cabeça num gesto de enfado, como se o outro estivesse a mais, como se tivesse de ser removido do seu mundo, removido e depois já não se falava mais disso.
O país a ferro e fogo, nas cidades os papo-secos organizavam comícios, as sedes dos partidos vandalizadas, nos quartéis as torneiras  iam pingando armas, bombas detonavam aqui e ali, um pouco por toda a parte os cravos iam murchando…
Em Novembro o Rapapé, fuzileiro reformado, chegou até nós e disse que tinha chegado a hora, não percebemos logo que hora seria, se boa se má. Tudo combinado, cortar acessos, ocupar a cooperativa, os bombeiros, o quartel da GNR e a esquadra da PSP. O pessoal da Alorna e do Casal Branco já estava avisado.
Iria ser no fim do mês, não dava para esperar mais, o país inteiro com a revolução, o povo em ânsias de igualdade.
Havia que ir buscar as armas, espalhadas por vários sítios, para depois as distribuir, que tudo ficasse entre nós. Mas não! alguém ouviu e contou.
No dia seguinte de noite fui com o Rapapé e o Milheiros à charneca, a uma fazenda do Gaudêncio, desenterrar armas que lá tínhamos, chovia miúdo, chuva de cortina.
Desenterramos as armas, ouvimos um restolhar por entre as vides e depois um tiro, outro tiro. Ao nosso lado, esventrado, o corpo morto do Rapapé.
Fugimos, sem armas, sem dignidade, miúdos que éramos ainda.
25 de Novembro, em Lisboa tudo se tinha esfumado, num ápice.
Nós a chorar a morte do Rapapé, também já não valia a pena.
O Rapapé foi a enterrar num dia de chuva. Todos nos abrigamos debaixo da tília enorme do cemitério, todos sem excepção, até mesmo os que o tinham morto, que toda a gente sabia quem eram, mas ninguém sabia quem foi. Todos na terceira margem da barricada.
No fim o Constantino encolheu os ombros e disse.
O povo é sereno.


Comentários

  1. Excelente peça.
    É bom desfrutar da memória, e ficar com a certeza de que ela serve para "Qualquer coisa"!

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