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Carta de uma guerra escusada


Tite, 3 de Fevereiro de 63
Depois de dias de tensão emocional grande, parece que as coisas, embora não voltem àquela calma anterior, estão com tendência para se aproximarem do normal.
Será uma calma enganadora para depois voltarem à carga com maior decisão?
Nunca se sabe, no entanto tenho dúvidas que tentem repetir a graça da malfadada madrugada de 23. Não só porque se saíram mal, deixando quatro mortos e mais de uma dezena de feridos, como a vigilância quadruplicou e melhoraram notavelmente as condições de segurança do aquartelamento.
Foi uma noite dramática, e quando nada o faria supor, eram cerca de uma e meia da madrugada, noite escura como breu, todos dormíamos; eu por acaso não estava na messe, pois tinha-me deitado no posto de socorros, onde tinha estado a ler até cerca da uma hora.
Acordei com uma fuzilaria dos demónios e com o explodir de uma granada. Inicialmente pensei que algum dos presos fugira e se tinha lançado a confusão. Mas rapidamente me convenci que tinham assaltado o quartel e fiquei em ânsias sem saber o que se passara.
O foguetório durou cerca de um quarto de hora, tempo após o qual se retiraram, ou melhor, cavaram. Quando fui saber dos pormenores, verifiquei que realmente fora um assalto e que morrera o Veríssimo e mais dois rapazes tinham ficado ligeiramente feridos.
A sentinela tinha dado o alarme e a rapaziada fartou-se de dar tiros sem grande necessidade. Mais de 90% dos tiros foram nossos, porque os assaltantes estavam mal armados e contavam com o efeito de surpresa para obter não sei que fins.
O Veríssimo teve muito pouca sorte aliada a bastante imprudência. Ele dormia na arrecadação que está mesmo em frente à porta do quartel, mal ouviu os primeiros tiros, levantou-se como estava e abriu o portão da casa. Os assaltantes estavam exactamente aí e limitaram-se a mandar uma rajada de pistola-metralhadora, que o apanhou de frente e lhe deve ter produzido a morte instantaneamente. Os camaradas dele que dormiam na mesma arrecadação, aguardaram dentro e nada lhes aconteceu.
Enfim, a vida é isto e num momento tudo se precipita.
No mesmo dia, por volta das três da tarde, morreu mais um soldado numa emboscada igualmente por aselhice. Iam duas viaturas, mas a grande distância uma da outra, o que está contra indicado. Estavam à espera na estrada, deram uns tiros na da frente, uns tiros na detrás, e felizmente apenas morreu um dos nossos.
Li o comunicado oficial sobre os acontecimentos e pasmo. Como se pode deformar tão habilidosamente os acontecimentos.
É claro que o resultado é exactamente o contrário do que se pretende uma vez nos habituamos a descrer dos nossos jornais. É com eles, com os responsáveis! As consequências as veremos se tudo correr com normalidade. 
Desde esse dia passámos a dormir todos no quartel, com dezenas de olhos a vigiar e armados até aos dentes. Muita gente está ansiosa que eles ataquem para fazer o gosto ao dedo, mas como disse no princípio, tenho sérias dúvidas que o façam. Vieram umas viaturas blindadas, as auto-metralhadoras que são quase invulneráveis, e que de noite podem patrulhar as imediações do quartel e bater qualquer grupo que esteja emboscado. Agora o perigo deve estar nas estradas, mas está-se a cortar o capim de um lado e do outro da estrada desde o Enxudé até Fulamunda, assim como arbustos e árvores numa faixa de cem metros, o que torna pouco prováveis as surpresas. Veremos...
... Eu cá vou indo, o meu estado de espírito não é famoso e há na realidade coisas que me preocupam, e cuja solução não sei qual seja. Inquieta-me o futuro, o meu e o de todos nós, é com ansiedade que encaro o desenrolar dos acontecimentos e as consequências desastrosas que advirão para Portugal. Por isso, eles mentem tão grosseiramente, para que a opinião pública não saiba o que se passa e não comece a fazer pressão. Um dia será tarde, mas a consciência disso não me acusa.
Como estão as coisas em Angola? Parece que há uma forte corrente pro-independência, mesmo entre os brancos de lá, que estão a ver a coisa a dar para o torto.”









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