Apanhei o 28 já no largo da Graça.
O Guarda-Freio olhou-me de soslaio quando tentei pagar o bilhete, depois encolheu os ombros e com um aceno indicou um lugar junto à janela para que me sentasse.
Passamos a igreja de S. Vicente, a Cerca Moura, a Sé, sem nunca parar, apesar das pessoas que acenavam frenéticas, ignoradas nas paragens sinalizadas.
Só nos detivemos junto à igreja da Madalena, para que um homem magro, de bigode retorcido e ar melancólico, pudesse entrar.
" Boa tarde Eduardo" disse o recém-chegado, o outro limitou-se a um grunhido indistinto, à laia de cumprimento.
Depois quedaram-se silenciosos, a olhar a rua e as pessoas, enquanto o eléctrico seguia na sua marcha desengonçada, ditada pelos carris impressos no empedrado.
No cruzamento com a Rua Augusta nova paragem.
Um homem ainda novo, de ar roliço e jeitos efeminados, chapéu de feltro cinzento a cobrir-lhe esparsos cabelos escuros, subiu sério,quase diletante.
"Olá Cesário, olá Eduardo".
"Olá" cumprimentaram-no em uníssono.
Sentou-se ao meu lado, sorriu-me.
"Olá! chamo-me Mário. Mário de Sá Carneiro."
"Como está"? retorqui.
"Estou morto, claro. Tal como você e como O Verde e o Coelho" sussurrou, enquanto com o seu queixo feminino apontava os outros dois.
"Mortos?"
"Sim mortos, todos mortos! por isso estamos aqui no 28.
É a nossa viagem quotidiana, de casa para os Prazeres, dos Prazeres para casa. Olhe agora vamos até ao largo de São Carlos para recolher o Fernando, depois paramos para o Zé Maria Chiado, depois para o Camões e sempre assim até chegarmos aos Prazeres"
"A sério?"
"Claro! este é o eléctrico dos poetas. Não me diga que não sabe..."
"Saber, sei, só que não me julgava morto."
Aqui nesta carreira só mortos, poetas mortos. O 28 é o eléctrico dos poetas mortos."
" Eu não sou poeta!"
"É sim, só que ainda não sabe."
"E o Guarda-Freio? Quem é ele?"
"É o Eduardo Coelho, fundou o Diário de Notícias, ao que parece... Mas não é por isso que aqui está. Foi durante anos empregado na casa de ferragens do pai do Verde, ali na Rua da Madalena, e tomou gosto pelas letras, ajudou muitos poetas...
É uma forma de poesia."
"Pois é"
Entretanto chegamos ao cemitério e evanescemo-nos.
Comentários
Enviar um comentário