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Memórias encontradas numa banheira


Foi-me impossível encontrar o compartimento correspondente ao número que figurava no meu salvo-conduto. Primeiro, fui ter ao serviço de Verística, depois ao de Desinformação. Um funcionário da Secção de Pressões aconselhou-me a subir ao oitavo andar, mas lá ninguém se dignou repara em mim.
Andei perdido entre uma multidão de militares; em todos os corredores ressoava o ruído dos seus passos cadenciados, o bater de portas e de tacões. A esse rumos marcial juntava-se um tilintar cristalino e confuso como o dos guizos de um trenó. De vez em quando, passavam empregados de bar com chaleiras fumegantes. Por engano, entrei nos lavabos, onde secretárias retocavam à pressa a maquilhagem. Às vezes espiões disfarçados de empregados de ascensor metiam conversa comigo. Um deles, que usava uma prótese de inválido, levou-me tantas vezes de piso em piso que já me acenava ao longe e renunciou até a fotografar-me com a máquina que trazia à guisa de cravo na botoeira. Por volta do meio-dia já me tratava por tu e mostrou-me o seu grande orgulho: um magnetofone dissimulado debaixo do chão do ascensor. Mas o meu humor estava cada vez pior e o meu espírito andava bem longe.

Stanislaw Lem -Memórias encontradas numa banheira

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