"E o senhor, como se chama?"
"Espere, tenho-o debaixo da língua
Tudo começou assim.
Tinha como que acordado de um longo sono, contudo, estava ainda suspenso num cinzento leitoso. Ou, então, não estava acordado mas a sonhar. Era um sonho estranho, sem imagens, povoado de sons. Como se não visse, mas ouvisse vozes que me relatavam o que devia estar a ver. E relatavam-me que ainda não via nada, a não ser um fumegar ao longo dos canais, onde a paisagem se dissolvia. Bruges, dissera a mim próprio, estava em Bruges, estivera alguma vez em Bruges, a morta? Onde o nevoeiro flutua por entre as torres como o incenso que sonha? Uma cidade cinzenta, triste como um túmulo florido de crisântemos onde a bruma pende esfarrapada das fachadas como uma tapeçaria...
A minha alma limpava os vidros do eléctrico para se afogar no nevoeiro móvel dos candeeiros. Nevoeiro, meu irmão incontaminado...
Um nevoeiro espesso, opaco, que envolvia os rumores, e fazia surgir fantasmas sem forma... No fim, chegava a um precipício imenso e via uma figura altíssima, embrulhada num sudário, a imagem da candura imaculada da neve. Chamo-me Arthur Gordon Pym.
Umberto Eco - A misteriosa chama da rainha Loana
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