Jantar na Trindade.
Um bife de lombo com ovo a cavalo e molho à Trindade.
Há muito tempo que não fazia isto.
Aproveitei a reabertura do Museu de Arte Popular e concedi-me uma noite de folga em Lisboa.
De seguida direitinho ao Bairro, fazer o périplo dos bares a ver se reencontro amigos, se desperto memórias, coisas pequenas, laços que não desfiz, laços que transporto pelo prazer de recordar, de os entender despidos do véu da distância...
Eis-me no Esteves.
Lá está o meu amigo sentado a uma mesa de canto, entretido com o jornal. A sua mulher, Felicidade (que glorioso nome) e o filho, estão atrás do balcão numa labuta aparente, mais para matar o tempo, já que o único cliente sou eu. Quedo-me a olhá-los e penso na sagrada família; provavelmente seriam assim, se José em lugar de carpinteiro tivesse uma tasca e se chamasse Esteves.
Ficaram a mirar-me, olhos franzidos, como que a percorrer lembranças de tempos idos. De súbito ei-lo que salta da cadeira...
"Ah grande cabrão! És mesmo tu?"
Abraçamo-nos. Tantos anos, talvez quinze; tanta água.
Contaram-me dos amigos que por lá ainda passam, muitos como eu, apenas para um abraço; outros, os resistentes, que continuam a ir, apesar de saberem que alguém quer acabar com o Bairro, com as pequenas tascas do Bairro. Que continuam a ir porque sabem que não são pequenas as tascas, que são enormes na vida vivida de quem por lá passou...
Depois, o relato dos anos que passaram.
"Fui atropelado pá. Estava de férias na aldeia e um belo dia tive de ir à vila buscar a minha filha que chegava de fim de semana.
Sabes que não tenho carta, vai daí chamei um carro de praça. Fui até à estrada, eram seis da manhã esperar pelo taxi... de repente apareceu um tipo perdido de bêbado e atropelou-me.
Sabes como é, vinha da noite...
Fiquei à morte e o gajo, com medo, arrastou-me para fora da estrada e largou-me no meio de umas silvas.
Fui descoberto por um vizinho que chamou a ambulância. Não morri por acaso. Estive um ano sem me poder mexer numa cama de hospital.
O gajo safou-se, descobriram-no por causa do bate-chapas onde ele foi pôr o carro, que achou estranho e chamou a guarda. Mas o tipo tinha dinheiro e conhecimentos... sabes como é, safou-se.
A minha Felicidade arrendou o café mas tivemos azar, deram-nos um calote e quase que nos destruíram a casa. Uma grande merda é o que te digo.
Mas pronto, já passou. E tu? conta-me..."
Desço o pano.
Comentários
Enviar um comentário