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Lá vai Calitro oh Toino (cont II)

Dito isto, virou costas e foi-se até à cozinha em pequenos passos de lebre saltitante.
O restaurante estava praticamente vazio, apenas um casal, instalado numa mesa de canto e uma cantora já idosa que entoava, com voz de borrego, uma área de ópera verde que se queria verde.
De súbito veio-me à memória a promessa de Cláudia Cristal: no cais, um pouco antes da meia-noite…
Que veladas promessas de deboche essa frase continha. Os meus pelos eriçaram-se em aplauso perante tão promissora expectativa. A Diva, nos meus braços a cantar a Marselhesa à luz do luar… Ah! Que noite de glória para um descante a duas vozes…
Como um serrote a cortar o meu devaneio Miguel Michael chegou de rompante com a sopa de tomate e um copo de groselha nas mãos. Fez um gracioso foueté e num gesto paquidérmico, largou na minha frente, quer a sopa quer a groselha, ambas fumegantes; gelo e fogo numa toalha verde.
“Gostaste do meu Foueté?
Foi para mexer a sopa, para agitar o gelo da groselha, para as tornar mais apetecíveis ao teu palato… meu Epicuro”
“Não sou Epicuro, sou até bastante apolíneo apesar da minha barriga e o meu nome é Zé Zurzido, detective público ou privado, consoante as circunstâncias”
“Pronto, não te abespinhes. Só queria ser agradável, já que a sopa está bispada e isto é apesar de tudo um espaço comercial.
Vá lá come e que te faça bom proveito…”
Foi o que fiz. Peguei na colher de plástico, enfiei-a na sopa e levei-a à boca, uma, duas, três vezes.
À quarta colherada, eis que emerge da concavidade nem mais nem menos do que Cláudia Cristal em miniatura, vestida de odalisca, com o corpo opulento coberto de polpa de tomate, a executar uma dança do ventre cheia de gestos e requebros.
“Sou o espelho de ti”, dizia em quanto dançava, “confia em mim” sussurrava, “fecha os olhos e deixa-te levar.”
Entrei em pânico. “Está uma Cláudia na minha sopa” gritei desesperado, “ Uma Cláudia!”, exclamei com voz de esganiço.
“Então? Eu avisei-te, a sopa é alucinogénica” disse Miguel Michael num passo de dança jazz, “aliás o vermelho e o negro são sempre alucinogénicos” continuou num vigor de marcha libertária, “não lutes contra isso! Deixa-te ir…” rematou numa contida pirueta.
“ Mas eu não quero alucinar, não preciso de alucinar” gemi.
“Vá, vá, bebe a groselha, isso vai ajudar-te” disse uma voz distante, profunda e cava como os dez mandamentos.
“Quem és tu?”
“Sou o João Juizinho, mas não te preocupes. Não tenho juízo nenhum, aliás já tive, mas com o tempo ele foi mirrando, mirrando…
Hoje estou a despedir-me dele.
Amanhã chamar-me-ei apenas João; ou João desjuizo se preferires.”  


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